terça-feira, 24 de novembro de 2009

Com a barba por fazer, as unhas imensas por cortar, agarro com razoável força o mesmo travesseiro de algodão anti-alérgico por longas e desgraçadas noites, a mão única da mãe sobre a minha testa suada, agora desperto de uma ressaca que parece ter me levado anos. Mesmo assim, consigo acordar, e mesmo assim me levanto e vou ao banheiro, tomo um banho e aplico o shampoo anti-caspas que custou sessenta e quatro reais e vinte e cinco centavos, o único que funciona e que possui a essência de hortelã que impede que eu enfim arranhe o couro cabeludo como um gato com as garras presas a uma almofada, e começo mesmo assim a traçar os milhares eventos de RPG a cumprir-se em um só dia, logo hoje que o nosso herói está insone, irritadiço, com a barba por fazer e as unhas por cortar. Que homem poderia ter sido, que sonetos poderia ter escrito. Sorrio, pela janela, para o movimento das ruas e mesmo assim anseio por mais nada que um pescoço no qual possa afundar as mãos até que perca completamente a respiração, o mal enfim, o amor enfim, qualquer obsessão que valha o passar dos dias e das horas.

Mesmo assim, ponho um jeans, um sapato qualquer que valha a minha tristeza, uma camisa branca, guardo cadernos, estojo e livros - Medéia, algum John Ashbery - na bolsa, visto a bolsa, e mesmo assim me olho uma última vez ao espelho. Ponho duas gotas de Chanel Nº5 atrás de cada orelha e no pulso esquerdo e me preparo para o que vão ser doze horas de dissimulação, doze horas de catalogação dos hábitos imbecis dos simples, doze horas a mais de espera por calma. E, mesmo assim, relembro os já antigos anos de perversão - a paixão, o velho espinho - um passado que já escorrega pelos dedos como cartas de baralho. Muitas vezes dou um riso inesperado, no mais escuro da noite. A porta que Deus abre ninguém fecha.

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